Sobre a domesticação
junho 15, 2017 7:29 pm Deixe um comentárioResumo do artigo escrito por Lyudmila Trut e Lee Alan Dugatkin intitulado “Como construir um cachorro”, publicado na edição de junho de 2017 da revista Scientific American Brasil, disponível para venda nas bancas.
Era o ano de 1958 quando Lyudmila Trut conheceu seu mentor, Dmitri Belyaev, que estava selecionando alunos para um experimento de domesticação então prestes a se iniciar no Instituto de Citologia e Genética de Novosibirsky, na Sibéria. “Quero fazer um cão a partir de uma raposa”, dizia ele. A ideia era selecionar raposas que, geração após geração, interagissem de forma mais positiva com os humanos. Era a chance de ver diante de seus olhos um processo similar ao que ocorreu com os lobos quando se transformaram em cães, durante o processo de domesticação.
A hipótese de Belyaev era simples: a característica determinante dos animais domesticados era a mansidão. Nesse sentido, no processo de domesticação, nossos antepassados favoreceram animais menos agressivos e menos temerosos em relação às pessoas. Belyaev acreditava, ainda, que características como caudas encaracoladas, orelhas caídas, padrão de pele malhada, a manutenção de características faciais juvenis (redondeza e um focinho reduzido – processo conhecido como neotenia) e menos dependência em relação à reprodução sazonal rígida foram subprodutos da seleção de animais mais mansos. Foi assim que, geração após geração e sob a orientação de Belyaev, Lyudmila criou raposas mais mansas selecionadas de fazendas para produção de pele na antiga União Soviética.
ELITES
Lyudmila diz que a equipe do projeto testava centenas de raposas todos os anos, seguindo um procedimento padrão criado pelo grupo. Classificava então as reações das raposas atribuindo notas mais altas aos indivíduos mais calmos.
“Nos primeiros anos, a grande maioria das raposas se parecia menos com cães do que com dragões cuspindo fogo: eram extremamente agressivas quando eu me aproximava ou colocava a vara dentro da jaula…”, relata a pesquisadora. Outras, também com notas baixas, na presença de humanos se recolhiam e ficavam no fundo de suas jaulas. Mas um número reduzido permanecia calmo durante o teste, apenas observando, sem reação. Esses eram selecionados para reprodução, com os devidos cuidados para evitar que a consanguinidade trouxesse consequências genéticas negativas para o experimento. Lyudmila mantinha registros detalhados de cada fase do desenvolvimento desses indivíduos.
Se as primeiras gerações das raposas calmas não mostraram atitudes sociáveis, a partir da 4ª ou 5ª geração os filhotes que mal sabiam caminhar passavam a abanar as caudas quando a pesquisadora se aproximava. Na 6ª geração veio o comportamento marcante, relatado pela autora em artigo publicado com colegas na revista Bioessays: “… na 6ª geração, surgiram filhotes que procuravam com avidez contato com seres humanos, não só com a cauda abanando, mas também se lamentando, choramingando e lambendo de forma semelhante ao cão”. Esses animais fizeram parte do grupo denominado “elite”. Eram raposinhas que olhavam quando ouviam seus nomes. Pareciam “ansiar por companhia humana”. Os filhotes domados respondiam a sons dois dias mais cedo e abriam os olhos um dia antes em relação às outras raposas.
As elites da 6ª geração compunham 2% do total de raposas. Hoje em dia, o total está em cerca de 70%.
TRANSPLANTES FETAIS
Geneticistas por formação, Belyaev e Lyudmila conduziram a investigação sob o ponto de vista da genética evolutiva. Desenvolveram então um teste envolvendo raposas mansas e raposas cuja seleção privilegiou a agressividade em relação a humanos. Transferiram embriões de mães mansas para o útero de mães agressivas e vice-versa. Se os recém-nascidos se comportassem como a mãe biológica, a mansidão e agressividade teriam origem fundamentalmente genéticas.
Lyudmila e a colega Tamara Kuzhutova registravam o comportamento dos filhotes tão logo começavam a interagir com humanos. Em um dos casos, uma fêmea agressiva teve filhotes agressivos e mansos na mesma ninhada. Os filhotes mansos corriam para a porta da gaiola abanando o rabo assim que viam um humano, comportamento que deixava a mãe irritada. Ela rosnava para os filhotes mansos, agarrava-os pelo pescoço e os jogava de volta ao ninho. Já os descendentes genéticos da mãe agressiva rosnavam para os humanos e corriam por conta própria até seus ninhos. A autora constatou, assim, que mansidão e agressividade em relação a humanos pareciam ter traços genéticos.
PUSHINKA
Em 1974 e na 15ª geração, as raposas mansas da elite já apresentavam traços como rostos aparentemente mais juvenis, caudas mais espessas, níveis de hormônio de estresse menores e seus ciclos reprodutivos duravam mais tempo.
Considerando que, dentre os animais domésticos, os cães são os únicos que desenvolvem relações estreitas com humanos, surgiu a dúvida se essa maior afinidade emocional poderia emergir de forma rápida com as raposas.
Foi então que Lyudmila propôs a Belyaev que usasse as raposas amansadas para examinar vínculos emocionais interespécies profundos, similares aos dos cães com humanos. Num experimento, Lyudmila mudou-se para uma pequena casa na fazenda onde realizavam as experiências e levou consigo algumas raposas da elite. Uma dessas raposas tinha o nome de Pushinka.
Pushinka estava prenhe e daria à luz em poucas semanas. A autora poderia observar, assim, não apenas como Pushinka se ajustaria a morar com ela, mas também se seus filhotes, nascidos em companhia humana, se socializariam de modo diferente até mesmo de outros filhotes da elite. Pushinka tinha liberdade para perambular por todos os cômodos da casa.
Os primeiros dias de Pushinka na casa foram muito agitados e instáveis, tendo perdido até seu apetite. Ela comeu somente quando Lyudmila lhe ofereceu um pedaço de queijo e maçã que havia preparado para si própria.
Para manter a vida familiar, a autora e outros colegas se revezavam na casa. Num certo dia, após retornar para seu turno, Lyudmila observou que Pushinka a esperava na porta, como um cão faz. Mas, a despeito dessa novidade, a raposa ainda apresentava muitas mudanças de humor. Ora ficava muito agitada, ora pulava para a cama e se enrolava perto da autora. Levou uma semana para Pushinka se acalmar.
A partir de então, Pushinka deitava aos seus pés enquanto ela trabalhava em frente à mesa. A raposa passou a fazer caminhadas com Lyudmila, brincar de esconder e achar petiscos no bolso. Às vezes, Pushinka se deitava de costas, de barriga exposta, para ser acariciada.
No dia 06 de abril de 1974 Pushinka deu à luz a seis filhotes. Para espanto da autora, a raposinha carregou um dos filhotes e colocou aos pés de Lyudmila. Quando essa levou o filhote de volta à toca, Pushinka o apresentou novamente. Ambas fizeram esse exercício várias vezes até que a mulher desistiu de levar o filhote de volta ao ninho.
Passadas algumas semanas, os filhotes circulavam pelos cômodos da casa. Todos corriam para fora da toca quando Lyudmila entrava no cômodo onde ficavam. Brincavam de jogar bola, os filhotes perseguiam a autora quando corria. Uma das filhotes, Penka, pulava nas suas costas quando a alcançava. Após alguns passeios mais desgastantes, a pesquisadora relatou em seu diário que os filhotes “dormiam, sem preocupações e sem medo”.
O crescimento da prole aproximou ainda mais Pushinka de Lyudmila, pois a raposa podia passar menos tempo vigiando os filhotes. Quando Lyudmila voltava após um tempo fora, a raposa mãe a esperava perto da porta, abanando o rabo. Então, em 15 de julho de 1974, veio outro acontecimento significativo: Pushinka descansava aos pés de Lyudmila quando ouviram passos do lado de fora da casa. Lyudmila não se importou, mas Pushinka sentiu perigo. Em vez de buscar proteção, a raposa correu em direção ao estranho e fez algo que a autora nunca havia visto ou veria novamente: Pushinka latiu, e o latido soou exatamente como o de um cão de guarda. Foi a primeira vez que ela agiu de forma agressiva e feroz em relação a qualquer pessoa.
Lyudmila verificou que se tratava do guarda da patrulha da noite. Começou a falar com o homem em voz calma. Pushinka, sentindo que estava tudo bem, parou de latir. Três meses e meio após se mudar para a casa, a raposa dava, portanto, por meio dos latidos, prova de sua lealdade, tal qual um cachorro.
A FUNDO NO DNA
Quarenta e três gerações se seguiram. E a experiência com os descendentes de Pushinka e seus pares domesticados estão descritos no livro “Como amansar uma raposa (e construir um cão)”. Hoje as raposas domadas são mais afetuosas com humanos e se parecem cada vez mais com cachorros. Seguem olhares e gestos humanos, seus focinhos são mais redondos e apresentam membros mais curtos e mais corpulentos.
Nos últimos anos, Lyudmila e sua equipe sondaram o processo de domesticação ao nível do DNA. Boa parte das regiões cromossômicas das mudanças genéticas, associadas às características morfológicas e comportamentais das raposas domesticadas, foram mapeadas no cromossomo 12.
Ao compararem algumas sequências de DNA dessas raposas com o que se sabia sobre a genética de domesticação dos cães, Lyudmila, Anna Kukekova e seus colegas confirmaram muitas semelhanças entre os processos. A equipe conclui que, por meio da reprodução seletiva durante dezenas de gerações, conseguiram reproduzir, ao nível genético, a transformação de um canídeo selvagem em um animal de estimação.
Para além do âmbito da genética, outros estudos estão sendo realizados. Um deles compara as vocalizações de raposas domesticadas às de raposas agressivas. Lyudmila e Svetlana Gogoleva descobriram que a dinâmica acústica da vocalização emitida pelas raposas amansadas se assemelha a um riso humano. A autora conclui o artigo dizendo: “Não sabemos como ou por que as raposas mansas “riem”, mas é difícil imaginar uma forma mais agradável de uma espécie criar vínculos com outra”.
É isso pessoal!
Abraços
Ricardo – Ossos do Ofício – Creche e Hotel para Cães
11 9.4197-7799
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Este artigo foi escrito porRicardo Assumpção